sexta-feira, 3 de abril de 2015

Espaço do Correspondente - Eduardo de Montaigne

As palavras, filtros da realidade
Parte 2

Numa era de globalização, onde conseguimos absorver todo o tipo de comportamentos, de praticamente todas as comunidades existentes à face da terra, conseguimos conhecer as razões e motivações de quase todas as culturas através dos novos meios tecnológicos ao dispor. Somos portanto, seres com uma capacidade de acesso à informação invulgarmente profunda, comparativamente àquilo que acontecia há apenas algumas décadas atrás. No entanto, e numa perspetiva social e prática, aquilo que é importante não é exatamente o lado gramatical, sintáxico ou lexical da linguagem. O verdadeiro interesse está naquilo que se faz na prática social ou psicológica do discurso, a maneira pela qual é utilizada a linguagem, a dinâmica entre o uso da linguagem e as relações sociais.

 A linguagem é a responsável na produção da história humana, da qual é, ao mesmo tempo, um produto. Tudo se processa como se houvesse inicialmente a consciência, que depois se apoia na linguagem para se expressar. A consciência do ser humano é obrigada a arrancar materialidade da língua, para construir um corpo suficiente para expressar emoções, raciocínios e construções mentais, sejam de origem lógica ou metafísica.

Se a existência humana é marcada pelas nossas paixões, desejos e pensamentos, a forma de expressar tudo isto assume importância fundamental. Assim como me basta o olhar para expressar o sentimento de desejo, o mesmo não acontece quando pretendo expressar pensamentos. Preciso realmente desse código que me foi dado por outros e que está em permanente evolução.

Herdámos basicamente todas as palavras. Poucos de nós podem dizer que criaram algum tipo de legado linguístico. O que vemos com frequência são indivíduos que tentam desvirtuar a riqueza da língua. Simplificar nem sempre significa enriquecer. Se, como dizia Jean Paul Sartre, ”nós somos aquilo que fazemos com o que os outros fizeram de nós”, nada mais óbvio que a linguagem para representar essa ideia.

O conhecimento histórico ou literário é um exemplo claro de que a compreensão não é nunca uma pura atualização de signos e conteúdos mortos, depositados em obras escritas. Compreender um texto ou fragmento do passado é, de fato, entendê-lo a partir da questão que ainda hoje ele nos suscita: um processo de contínua fusão ou alargamento de horizontes, como defendia Hans-Georg Gadamer.

A linguagem é simbólica, todavia, todas as motivações que estiveram na origem da sua criação são constantemente revistas e atualizadas pelos novos utilizadores de certa linguagem. De modo mais simples, a nossa linguagem é o modo como canalizamos as nossas ideias, seria de esperar que à medida que as nossas ideias se complexificam, o mesmo aconteceria à linguagem, para poder acompanhar a riqueza cognitiva do ser humano. Todavia, quando falo em simplificar a linguagem, não pretendo afirmar que a tornemos mais básica. A linguagem assume, cada vez mais, tarefas específicas, daí a necessidade de se refinar. Há cerca de 500 anos atrás, a linguagem assumia outros contornos, visto a evolução do ser humano encontrar-se em estádios diferentes. Na verdade, a linguagem tem uma vertente existencial tão vincada como o próprio ser humano que a criou. Não podemos ver na sua simplificação semiológica um mero defeito, mas compreender que quando isso acontece, significa que o ser humano necessita de algo acrescido àquilo que já possui de forma a poder expressar-se com mais fidelidade relativamente às subjetividades que se formam na sua consciência e pensamento.

A nossa humanidade carrega o fardo de todas as convenções criadas até ao presente. Assim, como só um artista extraordinário consegue materializar uma ideia que não faz parte do mundo a que chamamos de realidade, só um poeta ou um filósofo têm a capacidade de criar linguagem que transfigure emoções e sentimentos até então fechados a uma verbalização. Recriar não é o mesmo que criar. Atribuir símbolos linguísticos mais complexos a emoções e pensamentos ambíguos é o objetivo de todo e qualquer um que se devote à filosofia.

Descrever com palavras é apenas uma mera tentativa de traduzir realidades. Ao contrário da matemática e do teorema, as palavras do poeta, do filósofo, do político, são virtualmente as mesmas, no entanto, a realidade que as inspira não podia ser mais diferente.

Eduardo de Montaigne 
Parte 1


(Mikitype)

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