As palavras, filtros da realidade
Parte 2
Numa era de globalização, onde
conseguimos absorver todo o tipo de comportamentos, de praticamente todas as
comunidades existentes à face da terra, conseguimos conhecer as razões e
motivações de quase todas as culturas através dos novos meios tecnológicos ao
dispor. Somos portanto, seres com uma capacidade de acesso à informação
invulgarmente profunda, comparativamente àquilo que acontecia há apenas algumas
décadas atrás. No entanto, e numa perspetiva social e prática, aquilo que é
importante não é exatamente o lado gramatical, sintáxico ou lexical da
linguagem. O verdadeiro interesse está naquilo que se faz na prática social ou
psicológica do discurso, a maneira pela qual é utilizada a linguagem, a
dinâmica entre o uso da linguagem e as relações sociais.
A linguagem é a responsável na produção da
história humana, da qual é, ao mesmo tempo, um produto. Tudo se processa como
se houvesse inicialmente a consciência, que depois se apoia na linguagem para
se expressar. A consciência do ser humano é obrigada a arrancar materialidade
da língua, para construir um corpo suficiente para expressar emoções,
raciocínios e construções mentais, sejam de origem lógica ou metafísica.
Se a existência humana é marcada
pelas nossas paixões, desejos e pensamentos, a forma de expressar tudo isto
assume importância fundamental. Assim como me basta o olhar para expressar o
sentimento de desejo, o mesmo não acontece quando pretendo expressar
pensamentos. Preciso realmente desse código que me foi dado por outros e que
está em permanente evolução.
Herdámos basicamente todas as
palavras. Poucos de nós podem dizer que criaram algum tipo de legado
linguístico. O que vemos com frequência são indivíduos que tentam desvirtuar a
riqueza da língua. Simplificar nem sempre significa enriquecer. Se, como dizia
Jean Paul Sartre, ”nós somos aquilo que fazemos com o que os outros fizeram de
nós”, nada mais óbvio que a linguagem para representar essa ideia.
O conhecimento histórico ou
literário é um exemplo claro de que a compreensão não é nunca uma pura
atualização de signos e conteúdos mortos, depositados em obras escritas.
Compreender um texto ou fragmento do passado é, de fato, entendê-lo a partir da
questão que ainda hoje ele nos suscita: um processo de contínua fusão ou
alargamento de horizontes, como defendia Hans-Georg Gadamer.
A linguagem é simbólica, todavia,
todas as motivações que estiveram na origem da sua criação são constantemente
revistas e atualizadas pelos novos utilizadores de certa linguagem. De modo
mais simples, a nossa linguagem é o modo como canalizamos as nossas ideias,
seria de esperar que à medida que as nossas ideias se complexificam, o mesmo
aconteceria à linguagem, para poder acompanhar a riqueza cognitiva do ser
humano. Todavia, quando falo em simplificar a linguagem, não pretendo afirmar
que a tornemos mais básica. A linguagem assume, cada vez mais, tarefas
específicas, daí a necessidade de se refinar. Há cerca de 500 anos atrás, a
linguagem assumia outros contornos, visto a evolução do ser humano encontrar-se
em estádios diferentes. Na verdade, a linguagem tem uma vertente existencial
tão vincada como o próprio ser humano que a criou. Não podemos ver na sua
simplificação semiológica um mero defeito, mas compreender que quando isso
acontece, significa que o ser humano necessita de algo acrescido àquilo que já
possui de forma a poder expressar-se com mais fidelidade relativamente às
subjetividades que se formam na sua consciência e pensamento.
A nossa humanidade carrega o
fardo de todas as convenções criadas até ao presente. Assim, como só um artista
extraordinário consegue materializar uma ideia que não faz parte do mundo a que
chamamos de realidade, só um poeta ou um filósofo têm a capacidade de criar
linguagem que transfigure emoções e sentimentos até então fechados a uma
verbalização. Recriar não é o mesmo que criar. Atribuir símbolos linguísticos
mais complexos a emoções e pensamentos ambíguos é o objetivo de todo e qualquer
um que se devote à filosofia.
Descrever com palavras é apenas
uma mera tentativa de traduzir realidades. Ao contrário da matemática e do
teorema, as palavras do poeta, do filósofo, do político, são virtualmente as
mesmas, no entanto, a realidade que as inspira não podia ser mais diferente.
Eduardo de Montaigne
Parte 1
(Mikitype)
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