Discurso de dia 5 de Outubro de 2013, Dia Mundial do Professor
Gostaria de agradecer a presença de todas e de todos, e o convite feito pela Fenprof, para estar aqui hoje a falar sobre o presente da condição de ser-se professor contratado desempregado, e quando não desempregado, precário, em Portugal. No entanto, e porque somos um corpo maior de professores precários, decidi fazer acompanhar a minha voz pela voz de outros três colegas: a Indira, a Susana e o Ricardo, neste momento desempregados, à excepção da Indira, docente do quadro com horário-zero. Passarei a pronunciar as suas palavras, consciente de que estas se reflectiriam e multiplicariam em muitas outras manifestações.
«.Sou professora. Mas sobretudo sou um ser humano que merece como todos os outros respeito.
Sou do grupo 240 ou seja de EVT, a disciplina que foi a primeira a sofrer com a política de austeridade iniciada já com o governo de José Sócrates. A disciplina funcionava com par pedagógico devido à idade dos alunos e ao seu carácter experimental. A única disciplina onde os alunos aprenderam a resolução de problemas e o saber fazer. Era neste espaço que o pensamento crítico tinha lugar.
Amava a minha disciplina, investia imenso de mim, procurando diariamente novos desafios para os meus alunos fora da escola.
Neste momento encontro-me, devido à revisão curricular – que não é mais que uma medida economicista para despedir docentes e a eliminação do par pedagógico – na mobilidade com horário-zero. Faço coadjuvações na escola e outros serviços, mas não são contemplados como serviço lectivo e algures no próximo ano vou ser “requalificada” o que nada mais significa que um simples despedimento.
Para mim, como família monoparental com um filho que vai entrar na faculdade, é um dilema muito grande. Trabalho todos os dias, e por vezes 14 horas, para pagar as minhas contas e alimentar o meu filho.
Sinto uma enorme revolta contra este governo e os partidos em geral, ou seja, a classe politica. Estão-se a destruir existências de pessoas que contribuíram toda vida para a sociedade, agora sem esperança num futuro. Novos e velhos sem lugar nesta sociedade. Assistimos a mentiras e falsas promessas, e também a ameaças proferidas diariamente pelos governantes de Portugal, sem vergonha. Estamos a viver uma época do vale-tudo, onde não existem valores nem espinha dorsal. Sinto raiva e tristeza, mas não vou baixar os braços e vou continuar a resistir e lutar até ao fim! E se eu fosse um membro do governo, e em especial o Ministro Nuno Crato, preocupava-me, porque somos mais do que parecemos e vamos até as últimas consequências, porque não temos nada a perder. Somos todos professores: contratados, quadros de escola e quadros de zona.
Não sei o que escrever, não sou muito boa a exteriorizar os meus sentimentos para o papel. No entanto, acho que todos nós devemos sentir o mesmo. Resumindo, escolhemos ser professor por amor a esta profissão! Professor é: transmitir conhecimentos, estimular o aluno a desenvolver competências de aprendizagem e contribuir para formar os futuros cidadãos da nossa sociedade. Sinto que já fui feliz ao lecionar e que durante alguns anos servi o Estado, mas hoje em dia, por uma questão de números, para poupar, fomos arremessados para o desemprego. Cada vez mais é difícil, triste e desgastante ser tratada desta forma, pelas pessoas que nos deviam dar o devido valor. Ser professora, atualmente, é estar recorrentemente marcada por um vazio interior e por sentimentos de ansiedade, tristeza, angústia, medo e desânimo. Ano após ano, estas sensações ficam exacerbadas com o processo concursal, com as ofertas de escola e os seus critérios duvidosos, com a incerteza de obter um lugar e com as injustiças que vão acontecendo. Penso que se soubesse que isto iria acontecer, teria escolhido outra profissão porque não compensa ser professor. É uma vida frustrante, stressante, com sobressaltos e uma inundação de incertezas, e desta forma sinto que o tempo está a passar e não podemos construir a nossa vida pessoal. Chego à conclusão que, quanto mais o tempo passa, haverá mais instabilidade e uma total desvalorização desta profissão.
.Sou professor de educação visual e tecnológica. Perdão, era professor de educação visual e tecnológica. Atualmente não o sou. Queria ser, mas eles não me deixam porque, aparentemente, fico muito caro para o “contribuinte português”.
Houve uma altura, certamente como muitos de vós, em que acreditava que se me esforçasse ao máximo enquanto docente, “amealhando” dias de serviço por esse país fora e submetendo-me, por vezes, ao limite do meu reduzido orçamento, estaria a trabalhar para o meu futuro pois, “grão a grão”, estaria a conseguir o tão precioso tempo de serviço que me garantiria mais estabilidade profissional. Mas tal não aconteceu.
Poderei resumir a hecatombe que aconteceu: os critérios duvidosos nas contratações de escola; os asteriscos que permitiram que alguns vissem a sua graduação profissional aumentar magicamente em resultado da avaliação de desempenho; a reorganização curricular e o fim do par pedagógico; e, não satisfeitos, até acabaram com a maioria das atividades de enriquecimento curricular (empregos maioritariamente abaixo dos 300 euros).
Hoje sei o que me fizeram e sei também onde falhámos. Não nos colocámos à frente de sucessivas políticas educativas desastrosas, não batemos o pé em cada escola com a força necessária…
Atualmente, apesar de todos os dias tentar mudar de profissão, sinto que não tenho qualquer utilidade para o mercado de trabalho apesar de, paradoxalmente, ser considerado como tendo “habilitações a mais”, por possuir licenciatura e mestrado.
Por fim, deixem-me dizer apenas, não por mim, mas por todos os que (como eu) já fizeram parte da escola, dando o melhor de si a cada um dos seus alunos: valorizem-nos, porra!»
Regresso agora à minha voz para me reunir com as dos meus colegas, e juntarmo-nos a um corpo maior, muitas vezes silencioso, mas presente e significativo.
De cada vez que me pedem para falar sobre a condição de professor contratado, desempregado ou precário, sinto inúmeras dificuldades em estabelecer um discurso claro e objectivo sobre a escola, a educação, o ensino e o ser-se professor, no presente da nossa situação política e social. A escrita destas palavras revela-se conflituosa, pois não é a este território que pertence este nosso sentir e viver, não é por palavras que queremos falar, mas antes pela acção, sobretudo, a acção que está por vir.
A vida está para além deste texto, e expressa-se muito pouco nas palavras e no sentido que aqui convoco. Aos colegas que encarnei, pedi-lhes então que durante um minuto escrevessem sobre aquilo que é viver esse mesmo minuto no presente da educação e na sua situação de professores contratados e do quadro, desempregados ou precários. E aquilo que nos é comum é um mesmo eixo - desemprego, precariedade e humilhação.
Nestes últimos dois anos, pediram-nos para emigrar, para procurarmos melhores oportunidades, mudar de vida, alargar horizontes, enriquecermo-nos culturalmente, bater punho, vender pipocas, para sermos outros que não nós mesmos. Em nenhum momento pediram para sermos aquilo que somos, em momento algum nos deixam ser aquilo que somos, professores.
Estranhamente, antes de passarmos para a frente da sala de aula, como professores, quando o nosso lugar era ainda o das mesas dessa mesma sala, como alunos, pediram-nos para estudar, para sermos bons alunos, para tirarmos boas notas, para sermos bons profissionais, para sermos o orgulho dos nossos pais e do nosso país. Mas este mesmo tom paternalista não soube cuidar dos seus descendentes, e num gesto vilmente consciente esqueceu-os e abandonou-os. Egoísmo e hipocrisia. Deslealdade e frustração.
Fora da escola, cá fora, o presente esvaziou-se de sentido, separou-se da vida e da realidade pela esquizofrenia dos discursos políticos que nos fazem duvidar de nós próprios e dos outros, e da possibilidade de fazer da esperança e do desejo de mudança artifícios simbólicos de crença na concretização de uma outra realidade, melhor, longínqua e justa desta que vivemos.
Recordamos hoje a memória da revolução republicana de 5 de Outubro de 1910, e volvidos cento e três anos, a democracia urge em concretizar-se. Uma revolução urge ser retomada, pois a ameaça totalitarista de um poder autoritário, desumano, manipulador e discriminatório nunca despareceu, apenas assumiu novas formas, outros disfarces e sofisticados meios de controlo e repressão. Hoje, também, dia 5 de Outubro, comemoramos o Dia Mundial do Professor, num tempo e num espaço em que 30 mil professores portugueses foram dispensados das suas funções. Um afastamento justificado pela exigência da aplicação de um modelo de rigor, excelência e qualidade para o sistema educativo português. Princípios e valores absurdamente ilógicos que apenas reiteram uma expressão maior: a democracia, a sua matriz ideológica norteada pela liberdade, pela igualdade, justiça, emancipação, progresso, é uma força fundamental para a realização igualitária da sociedade, e esta realização representa uma ameaça ao poder dominante, expressão de uma ideologia pequena, de controlo e de medo, de segregação e exclusão. A soberania popular assusta a fria máquina capitalista. Há que a dominar…
É irónico observar que o Ministério da Educação e Ciência se encontra sediado na Avenida 5 de Outubro, mostrando uma espécie de subversão simbólica daqueles que foram os ideais republicanos, num momento histórico também ele maculado pela promiscuidade das relações de poder entre minorias poderosas e a ordem de controlo social pelo imperativo da miséria e empobrecimento das classes populares. O que temos, assim, aqui e agora, é um ministério deslocado do seu tempo e da sua realidade, do seu sentido e da sua história.
Rememoramos o significado do dia de hoje num período político paradoxal, marcado por um programa de morte assistida da democracia e das suas instituições e funções fundamentais. Um período que se expõe através de uma gramática difícil, obscura e intimidadora, onde os discursos políticos e mediáticos assumem uma carga pessimista, e a especulação possui um significado influente de controlo, domínio e autoridade sobre a própria acção. Discursos que assumem falsos valores de verdade, transmitidos como absolutos e inabaláveis, fazendo da alternativa e da dúvida impossibilidades.
O medo, a desconfiança, a descrença e a negatividade constituem o espírito do presente, desta história e desta realidade.
As decisões políticas de fundamento e prioridade económica para a estrutura social vão continuamente degradando o corpo colectivo, destabilizando e perturbando-o, deixando-o em suspenso e com uma carga dramática que intensifica a suspeita e a dúvida na possibilidade de um porvir melhor, diferente. E fantasiosos serão os que professam qualquer narrativa positiva, optimista, assente em pressupostos de mudança, de destabilização das posturas complacentes, de participação, de activação e mobilização, que buscam na problematização e no debate crítico instrumentos regeneradores contra a instalada gramática de crise que tomou o espaço público das instituições e das relações sociais e culturais. Serão também compreendidos como românticos, idealistas ou, então, loucos, por não compreenderem a realidade que atingiu a luz ao fundo do poço. São apelidados de ma-so-quis-tas.
Mas não é masoquismo senhor presidente, é teimosia. A certeza de que existem alternativas porque o mundo pertence aos homens, e as leis não são de Deus. Insustentável é o discurso da ordem de empobrecimento para o desenvolvimento do crescimento económico, insustentável é a repetição da retórica política de cunho neoliberal:
- Sequestro, resgate, sacrifícios, mercados, austeridade, escravatura, precariedade, flexibilidade, competitividade, rendimento, funcionalismo técnico, empreendedorismo, lucro, livre escolha, empobrecimento, humilhação, marginalização, distinção, segregação, exploração.
Não queremos regressar aos mercados, queremos regressar ao nosso futuro, aquele que hipotecaram aos senhores do mundo.
Recusamos a ordem binária para onde se dirige a organização do mundo, operando entre o fundamentalismo intolerante e a permissividade liberal, sem um meio, sem um sentido de razoabilidade, sem um posicionamento ético, acrítico, letárgico. No entanto, estamos precisamente num meio, mirando a direita e a esquerda, o por vir e o que foi, a frente e a rectaguarda, o passado e o futuro, e o nosso enfoque é o presente, esse lugar do meio, o agora, como impulso para o que se segue, para depois de um percurso do passado, traçar o caminho para o futuro.
Falta-nos viver. Romper a bolha que nos isola do mundo, romper o estado latente, anestesiado. Deixar entrar oxigénio, como metáfora de revitalização do organismo maior que é o tecido social e humano. Sermos infectados pela realidade, contagiados pela vida, expulsando o medo. Expormo-nos para nos colocarmos à prova, resistirmo-nos aos agentes de contaminação para criar anticorpos, fortalecermo-nos pela experiência de invasão e luta.
Resta-nos ocupar e resistir. A Constituição da República Portuguesa e a Lei de Bases do Sistema Educativo servem a força e a autoridade para reclamarmos a legitimidade política do nosso exercício profissional, a função social das nossas práticas, e o significado cultural, civil e simbólico da nossa classe.
Lutemos por nós próprios, e pelos nossos alunos.
Obrigada.
Michelle Domingos
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